Memória da Cana: Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues & Gilberto Freyre

A família é o lugar da traição, nossa primeira trama de afetos. Talvez a família seja mesmo uma prisão de portas abertas de onde o preso não quer fugir, como escreveu Paulo Francis. Mas é ela o lugar onde somos insubstituíveis. É no batismo do sangue, da placenta, da paixão, por onde andam Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues, que recebemos o nosso nome sagrado, e deixamos marcas. Memória, história: a família é o lugar onde nunca serei apenas um número, mesmo sendo a filha número doze de uma família qualquer. Como fugir de mim? Até a morte... é fuga, ou encontro com aquilo que sou, quero ser, e posso ser? Pois na família sou, circunscrevo minha ação num álbum, na recordação dos parentes, nas entranhas do lar e do ambiente para onde sempre volto, entranhas da terra, a Terra, o útero. Na forma patriarcal, a família põe em cada membro as algemas da repressão da sexualidade. Muito além do tabu do incesto, não se pode ser: bonito, amado, livre. Os ferros da moral burguesa pesam no indivíduo como se fossem destino, impossibilidade: teu irmão te mata, trai o teu desejo de viver. Na forma matriarcal, a família é o ninho onde nasce a liberdade. A liberdade de escolha: te amo ou não te amo. A liberdade de atitude: te cuido ou te mato. A família é o ninho onde sou presa e predador, dor e amor, cor e sabor. A família é o ninho onde tudo faz sentido porque se volta para o começo. Onde eu me entendo porque me conheço desde quando eu nasci. Não deixem de ver o espetáculo "Memória da cana", uma livre adaptação da peça "Álbum de Família" de Nelson Rodrigues, com direção de Newton Moreno. Neste trabalho de "purgar" e construir, Carlos Ataíde, Kátia Daher, Luciana Lyra, Paulo de Pontes, Marcelo Andrade, Viviane Madureira e Newton criaram com suas memórias e processo de reflexão histórica uma encenação onde expressam a paixão tanto de Nelson Rodrigues como de Gilberto Freyre. Me surpreendi ao analisar as configurações planetárias de Nelson e Gilberto. Ambos tem em seu mapa astral o aspecto de quadratura de Mercúrio e Saturno. Com isso, eles viveram em suas vidas o teste da razão que esse aspecto traz , a necessidade da comunicação e do silêncio. Saturno representa no mapa aquilo que precisamos desenvolver de qualquer maneira e para ambos o fardo da comunicação(Mercúrio) se faz como cruz, realização crística, transcendência. Não tenho a hora de nascimento de Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, mas comparando seus planetas e pelo dia de nascimento sabemos que Gilberto Freyre tinha a Lua em Virgem, se " casando" com os planetas em Virgem de Nelson Rodrigues. E com a diferença de 12 anos entre eles, completando um ciclo de Júpiter, temos entre eles a conjunção de Júpiter, facilitando a compreensão filosófica e política entre ambos. Netuno na configuração astrológica de Gilberto Freyre faz aspecto com Plutão de Nelson. É na sociologia do açúcar de Gilberto Freyre que o teatro mítico e profundo de Nelson Rodrigues encontra suas raízes humanas e sociais, e essa configuração astrológica representa esse encontro da sorte e da questão em comum dessas duas mentes: escrever explorando o limite, tocar a alma com palavras, expor a realidade com sua dor e interrogação, curar o medo com cultura, arte, conhecimento, voar com as asas de Mercúrio além dos portais de suas próprias mortes, transcendendo o seu tempo por terem se dedicado a ele da forma mais saudável, questionando-o.